Por Ronilson Barboza de Sousa¹
A maneira como se processou a
expansão das relações de produção capitalista no Brasil, diferenciando-se da
forma como ocorreu em países da linha de frente do capitalismo, de alguns
países da Europa Ocidental e dos EUA, em que gerou conflito entre os
proprietários fundiários e a burguesia industrial, resultando na vitória da
burguesia industrial e na distribuição da terra; no Brasil, principalmente com
o fato de a burguesia ter emergido de parte do próprio latifúndio, a forma como
o capital se expandiu promoveu a concentração de terras. Esse fato marcou a
formação social e a dinâmica da luta de classes.
Na Inglaterra
e nos EUA, por exemplo, a diferença entre terra e capital criou as condições
históricas da existência de duas classes distintas: os proprietários da terra e
os capitalistas. No caso da Inglaterra2, o conflito entre os proprietários
fundiários e a burguesia industrial. Enquanto os proprietários fundiários - na
obsessão pelo monopólio da propriedade fundiária e, portanto, pela garantia e
expansão dos ganhos com a cobrança de renda da terra – se organizaram para
impedir a importação de cereais por meio das leis dos cereais3; os
capitalistas, buscando aumentar os seus lucros a partir da diminuição do custo
de reprodução da força de trabalho, gerada pela queda do preço dos alimentos,
organizaram-se para suprimir todas as restrições à importação de cereais. O
resultado desse conflito foi o triunfo da burguesia industrial sobre os
proprietários fundiários.
No caso dos
EUA4, se estruturaram duas formas de ocupação do território. Ao norte,
estabeleceu-se uma ocupação de povoamento, sobretudo por parte de camponeses fugitivos
de guerras religiosas e das condições de miséria a que estavam submetidos em
seus países de origem. Ao sul, estabeleceu-se uma forma de ocupação territorial
muito parecida com a do Brasil, isto é, pelo latifúndio escravista e uma
produção, para o mercado externo, de produtos tropicais como o tabaco, o
algodão e o açúcar. No norte desenvolveu-se uma economia com pequenas
manufaturas e com atividades comerciais que determinaram o surgimento de uma
burguesia integrada ao processo histórico mundial da época (o período das
revoluções burguesas, que vai do século XVIII até a primeira metade do século
XIX, por volta de 1848). Essa burguesia assumirá uma postura revolucionária e
será responsável pela condução política do processo de independência em relação
à Inglaterra, em 1776, sendo que, no século seguinte, avançará sobre a
estrutura escravista do sul, na Guerra Civil de 1861-1865, destroçando o
latifúndio escravista que estrangulava o pleno desenvolvimento das forças
produtivas capitalistas. A vitória dessa burguesia industrial sobre o
latifúndio escravagista, garantiu a distribuição de terras, que aconteceu
mediante uma lei de colonização, que estabelecia um tamanho máximo de
propriedade, cerca de 89 hectares por família, e que mesmo os ex-escravos poderiam
se apropriar da terra5.
Já no caso
brasileiro6 aconteceu justamente o inverso. Não houve, aqui, um forte embate de
classes entre a oligarquia agrária e a burguesia industrial. Não houve ruptura
revolucionária com a ordem que consubstancia na manutenção do latifúndio
escravista e configura a economia agroexportadora. Parte da oligarquia agrária,
envolvida com economia agrário-exportadora foi gradativamente transformando-se
em burguesia industrial. Parte relevante da riqueza sob controle dos agraristas
envolvidos com a economia agroexportadora, principalmente com a produção
cafeeira do século XIX, foi direcionada para as atividades urbano-industriais,
a principio como uma forma de viabilizar a própria economia
agrário-exportadora, para aumentar os ganhos com a atividade agrícola, e em
seguida no próprio processo de industrialização do país.
O
marco desse processo de industrialização do Brasil7 foi a chamada Revolução de
1930 (que, na verdade, não passou de um golpe de Estado, liderado por uma
fração modernizadora da burguesia, representada por Getúlio Vargas). Ela marca
o fim da hegemonia agrário-exportadora e o início da predominância da estrutura
produtiva de base urbano-industrial, ainda que a participação da indústria na
economia só supere a da agricultura em 1956. No entanto, os proprietários
fundiários não foram banidos, como aconteceu no capitalismo clássico,
mantiveram-se ativos, participaram na condição de agentes do negócio
agroexportador. O governo Vargas não enfrentou os proprietários de terra. Na
verdade, nesse governo estabeleceu-se um pacto, no qual os proprietários de
terra não dirigiam o governo, mas não eram contrariados por ele, apesar de um
certo controle da economia agrário-exportadora. É significativo, por exemplo,
que o governo Vargas, que consolidou as leis trabalhistas, em 1942, não tenha
estendido aos trabalhadores rurais. A economia agrário-exportadora mantém-se
ativa, mas sem o estímulo de ser o centro do sistema.
Um
conjunto de medidas foram adotadas8 para garantir o novo modo de acumular, para
fazer da indústria o centro do sistema, principalmente com a intervenção do
Estado: confiscando lucros parciais, a exemplo do café; aumentando o custo
relativo dos empréstimos à agricultura, enquanto buscava diminuir os da
indústria; rebaixando o custo de capital na forma de subsídio cambial para as
importações de equipamentos para a indústria; regulando o preço da força de
trabalho e formando um exército industrial de reserva; mas, principalmente, na
expansão de créditos a taxas de juros negativas, investindo na produção (como
exemplo: Volta Redonda e Petrobras). Nessa circunstância, a agricultura ganha
um novo papel: de um lado, fornece um contingente de força de trabalho, que
forma o exército industrial de reserva; de outro, fornece alimentos e matéria
prima, não obstaculizando o processo de acumulação urbano-industrial. Ainda são
introduzidas novas relações de produção no campo, que tornam viável a
agricultura comercial de consumo interno e externo pela formação de
proletariado rural sem direitos. Em linhas gerais, essa foi a fórmula que a
burguesia encontrou, no Brasil, para aumentar os seus lucros, a partir da
diminuição do custo de reprodução da força de trabalho: formação de uma
superpopulação relativa ou exército industrial de reserva; um proletariado
rural sem garantia de direitos e produção de subsistência fornecendo,
principalmente, alimentos. A conciliação entre o crescimento industrial e
agrícola foi possível mediante o tratamento de controle da economia
agrário-exportadora, com os confiscos parciais de lucro; no entanto, esse
confisco parcial de lucro foi compensado com o fato de o crescimento
urbano-industrial ter permitido às atividades agropecuárias manterem seu
padrão, baseado numa superexploração da força de trabalho.
A partir
dos anos cinquenta, começa a haver um maior impulso tecnológico no próprio
campo. O Estado será de suma importância no sentido de assegurar essa
modernização tecnológica, a mecanização de grandes fazendas, com financiamento
subsidiado, e outros mecanismos, além de processos de expropriação e mobilidade
do trabalho, que também provocou conflitos e luta pela terra. A mobilização que
surgiu desse processo despertou inquietações no pacto da classe dominante, que
se viu forçada a garantir o bloco hegemônico, lançando mão da ditadura
empresarial-militar.
A
concentração de terra aumentou durante o período da ditadura
empresarial-militar de 1964, garantindo a concentração empresarial na atividade
agrícola, por meio da liquidação de grande parte do patrimônio devoluto em
favor de grandes capitalistas. Houve, ainda, um aprofundamento das relações
técnicas da agricultura com a indústria e de ambos com o capital internacional.
Consolidou as bases do processo de modernização com a permanência da grande
propriedade, um pacto agrário tecnicamente modernizante e socialmente
conservador (que também é chamado de modernização conservadora), que,
simultaneamente à integração técnica da indústria com a agricultura, trouxe
ainda para o seu abrigo as oligarquias rurais ligadas à grande propriedade.
Em
1967, por exemplo, o Brasil possuía 3.638.931 imóveis rurais. Desses, 1,4%
(50.945) eram imóveis classificados como grandes propriedades (mais de 1000
hectares) e ocupavam 48,9% (176.091.002 ha) da área total de 360.104.300
hectares. Já em 1972, o número total de imóveis era de 3.387.173 e as grandes
propriedades representavam apenas 1,5% (50.548), ocupando 51,4% (193.749.742
ha) da área total (370.275.187 ha). E em 1978, o total de imóveis era
3.071.085, e as grandes propriedades representavam 1,8% (56.546), ocupando 57% (246.023.591
ha) da área total (419.901.870 ha). Por outro lado, as propriedades, com área
inferior a 100 hectares representavam em número em 1967, 86,4% (3.144.036) mas
ocupavam uma área de apenas 18,7% (67.339.504 ha). Em 1972, eram 85,8%
(2.905.416) e detinham 17,5% (61.096.524 ha) da superfície agricultável, e em
1978, eram 83,8% (2.581.838) ocupando 14,8% (59.939.629 ha) da área total9.
Esse
processo de modernização conservadora é caracterizado, de um lado pela mudança
na base técnica de meios de produção utilizados na agricultura, com a presença
crescente de insumos industriais (fertilizantes, defensivos, corretivos do
solo, sementes melhoradas, combustíveis líquidos, etc.), e de máquinas
industriais (tratores, colhedeiras, implementos, equipamentos de irrigação,
etc.); de outro, por uma integração entre a produção primária de alimentos e
matérias-primas e vários ramos industriais (oleaginosos, moinhos, indústrias de
cana e álcool, papel e papelão, fumo, têxtil, bebidas, etc.). Esse bloco do
capital, logo em seguida, constitui a estratégia do agronegócio, que vem
crescentemente dominando a política agrícola do Estado10.
O
agronegócio, na acepção brasileira do termo, é uma associação do capital
monopolista com a grande propriedade fundiária. Uma complexa articulação de
capitais direta e indiretamente vinculados aos processos produtivos
agropecuários, que se consolida no contexto neoliberal sob a hegemonia de
grupos multinacionais, que realiza uma estratégia econômica de capital
financeiro, perseguindo o lucro e a renda da terra sob patrocínio de políticas
de Estado11. Isto é, o agronegócio é uma associação do grande capital com a
grande propriedade fundiária, sob a mediação do Estado, junto ao comércio
internacional. O agronegócio envolve uma ampla articulação de capitais, sob o
controle de grupos econômicos multinacionais e cuja maximização de lucros é
viabilizada, de um lado, por se inserir em um contexto de mundialização do
capital em forma neoliberal, em que os capitais têm ampla liberdade de
circulação, em que ocorre uma rápida difusão de informações, técnicas e
tecnologias e, simultaneamente, uma intensa precarização do trabalho. O Estado
viabiliza o agronegócio, garantindo recursos e condições políticas e jurídicas
para suas atividades, principalmente a produção e a exportação de commodities
(portanto, considerar qualquer produção agropecuária como agronegócio é um
equivoco que só interessa à classe dominante, faz parte da manipulação
ideológica do agronegócio a generalização do termo).
Os números disponíveis
sobre a estrutura fundiária do Brasil mostram que as propriedades maiores de
1000ha, que representam 1,474% dos imóveis rurais (81.331) de um total de
5.498.535, concentram 52,79% (319.609.244,32ha) de uma área total de
605.387.746,06ha. Enquanto isso,
as propriedades até 100ha representavam 86.18% dos imóveis (4.738.742), ocupam
17,18% da área (104.020.700,41ha). Ou seja, a maioria dos imóveis ocupam pouca
terra, enquanto que a minoria, que é de grandes proprietários, ocupa muita
terra12.
Embora o agronegócio esteja colocando para produzir,
grande quantidade de terras, que antes eram utilizadas como reserva de valor -
no Brasil, grande parte das terras ainda são utilizadas como reserva de valor,
são especulativas e rentistas. Os Bancos ainda estão entre os grandes
proprietários de terra, como o Banco do Brasil S/A e
o Banco Bradesco S/A, em 4º e 6º lugar, com 164.974ha e 131.347ha,
respectivamente, possuindo terras em todos os estados do país. Ressalta-se que,
alguns pesquisadores apontam que, depois da crise de 2008, houve uma
considerável aplicação de capitais, na compra de terras, aqui no Brasil, para
utilizar como reserva de valor13.
Nesse sentido, o agronegócio controla 70% das áreas
produtivas; 90% dos recursos públicos para o financiamento e produz somente 50%
dos alimentos; enquanto o campesinato possui apenas 30% das áreas produtivas;
apenas 10% dos recursos públicos de créditos, todavia produz 50% dos alimentos14.
Isso ocorre porque a prioridade do agronegócio é produzir commodities, e não
alimentos. Mesmo com pouca terra, apenas uma quarta parte da área dos
estabelecimentos agropecuários, a agricultura familiar camponesa tem peso
fundamental na cesta básica dos brasileiros. Os estabelecimentos familiares são
responsáveis por 87% da produção nacional de mandioca, 70% de feijão, 46% do
milho, 38% do café, 34% do arroz, 21% do trigo. Ainda respondem por 58% da
produção do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves e 30% dos bovinos.
38% do valor bruto da produção, uma produção avaliada em R$ 54,4 bilhões por
ano, são devidos à agricultura familiar. E os ganhos têm sido maiores nos
estabelecimentos de até 10 hectares, R$ 3.800,00/ha de receita15.
Toda essa concentração de
terras, que atravessa a história do país e perdura até os dias atuais,
estabeleceu-se com conflitos, que, da mesma forma, mantém-se presente no campo
brasileiro. Portanto, a luta pela terra, pela reforma agrária se choca
com a ordem capitalista em curso, torna-se uma luta anticapitalista, ainda que
nem todos que lutam por ela tenham plena convicção disso.
NOTAS
1 Militante do
Partido Comunista Brasileiro (PCB)
2 MARX, Karl. O Capital - Crítica da Economia Política: O Processo de Produção do
Capital. 22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Livro 1, vol. 2.
3 Foi
uma série de leis cujo objetivo era a defesa dos interesses dos proprietários
de terra ingleses. As primeiras datam ainda do século XV. Em 1815, garantia
poder irrestrito aos proprietários fundiários, inclusive proibindo a importação
de grãos, caso o valor não obedecesse às normas estabelecidas na lei. Em 1828,
o objetivo era elevar as taxas de importação de cereais toda vez que os preços
caíam no mercado interno e vice-versa. E, já em junho de 1846, o Parlamento
inglês suprimiu todas as restrições à importação de cereais submetendo os
proprietários fundiários ingleses à competição com a propriedade fundiária do
estrangeiro (idem).
4 MAZZEO, Antonio
Carlos. Burguesia e Capitalismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Ática,
1995, 83p.
5 STÉDILE, João
Pedro. A luta pela reforma agrária e o MST. In: STÉDILE, João Pedro (Org). A
Reforma Agrária e a Luta do MST. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 95-110.
6 PAULINO, Eliane
Tomiasi; ALMEIDA, Rosemeire Aparecida de. Terra e Território: a questão
camponesa no capitalismo. São Paulo: Expressão Popular, 2010, 107p.
7 OLIVEIRA,
Francisco de. Crítica à razão dualista o ornitorrinco. São Paulo:
Boitempo, 2011, 150p.
8 Idem.
9 OLIVEIRA,
Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma
Agrária. São Paulo: FFLCH/Labur Edições, 2007.
10 DELGADO,
Guilherme. A questão Agrária no Brasil, 1950-2003. Disponível em:
<http://www.geomundo.com.br/Guilherme-C-Delgado-A-Questao-Agraria-no-Brasil.PDF>.
Acesso em: 20 de Jan. de 2013.
11 CAMPOS, Christiane
Senhorinha Soares Campos. A face feminina da pobreza em meio à riqueza do
agronegócio. São Paulo: Expressão Popular, 2011, 200p.