Reconhecimento do Iphan chega no momento em que a internet promove desafios entre cordelistas do Brasil e do exterior, difundindo mais ainda a cultura
Por FRANCISCO EDSON ALVES/ Jornal "O DIA"
Trazida pelos portugueses na segunda metade do
século 19, a literatura de cordel narrativa poética popular com métricas e
rimas perfeitas ou quase perfeitas , receberá quarta-feira o registro de
Patrimônio Cultural do Brasil. O título, concedido pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), atende a pedido de 85 poetas, feito em
2010, através da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), no Rio.
"É um momento histórico. É a coroação de 30 anos da academia, que
incentiva, divulga, produz e revela novos talentos", diz, emocionado, o
presidente da ABLC, Gonçalo Ferreira da Silva, de 80 anos, autor de 300 cordéis
e 30 livros.
O reconhecimento vem
numa hora de 'efervescência cordelista' graças à internet, que agora propaga desafios
virtuais (pelejas). A poetisa Dalinda Catunda é pioneira. "Comecei
brincando com a escritora Rosário Pinto. Hoje, as pelejas ocupam um espaço
importante nas redes sociais", orgulha-se.
No Rio, estima-se que
vivam cerca de 50 cordelistas cariocas, nordestinos, paulistas e mineiros. Na
Fundação Casa de Rui Barbosa, o acervo digital de mais de 2,3 mil folhetos (há
outros 9 mil na fila) é mais acessado que as obras do próprio patrono 120 mil
em dois anos.
Já o Escritório da
Biblioteca do Congresso e a Divisão Hispânica da Biblioteca do Congresso em
Washington estão formando, por meio da American Folklife Center (AFC), a maior
coleção de cordéis do mundo, com mais de 12 mil peças, a partir de 1930.
Outro termômetro do
sucesso: só a Copiadora Father, no Centro, imprime ao menos mil livretos de
escritores populares por mês. "Nos tornamos especialistas", diz o
gráfico Fábio Albino. Na Feira Nordestina de São Cristóvão, cordelistas de
outras cidades têm destaque, como Isael de Carvalho, de Petrópolis, e o mineiro
Manoel Santa Maria. "Versos em oito páginas custam R$ 3",
propagandeia Isael. Por R$ 300, são feitos cordéis personalizados para
aniversários, casamentos e homenagens.
Para Rosilene Alves de
Melo, pesquisadora que coordenou os trabalhos do processo, o momento se traduz
em dois significados: "Primeiro, o reconhecimento, ainda que tardio, pelo
Estado brasileiro, da importância de uma prática cultural que por muito tempo
foi considerada poesia menor, à margem das elites. O poeta Raimundo Santa
Helena, para lembrar, foi rechaçado por duas vezes em 1980, por acadêmicos, ao
tentar ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), mesmo tendo escrito
500 folhetos. Na Praça XV e no Campo de São Cristóvão, folhetos eram
apreendidos e os poetas presos (no século passado). O segundo aspecto é a
dimensão política. O acesso a literatura de cordel passa a ser um direito de
todos. Os poetas e toda a cadeia produtiva poderá reivindicar políticas
públicas para a sua salvaguarda e difusão", ressalta.
Maria Elisabeth Costa, chefe
do setor de pesquisa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, que
supervisionou os estudos pelo Iphan, exalta a internet como ponte para outras
expressões artísticas. "É a ligação com o cinema, com as novelas, com as
revistas em quadrinhos... Surpreendem a força e a vitalidade do cordel que, ao
contrário de diversos prognósticos quanto ao seu desaparecimento no século 20,
chegou ao século 21 fortalecido e adaptado a novos formatos e linguagens",
atesta.
Entrevista com Rosilene Alves de Melo, historiadora,
professora da Universidade Federal de Campina Grande e pós-doutoranda pelo
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP), que
coordenou a pesquisa para o processo de registro do cordel no Iphan
O DIA - Desde 1990 pesquisando cordéis pelo Brasil, o
que a surpreendeu nesse período?
Rosilene: O que
surpreende é a força e a vitalidade da literatura de cordel que, ao contrário
de diversos prognósticos quanto ao seu desaparecimento no século XX, chegou ao
século XXI bastante fortalecida e se adaptando a novos formatos e
linguagens.
Além do Nordeste, outros estados, como Rio e São Paulo,
por exemplo, têm se destacado na produção de cordéis?
Rosilene: Podemos
afirmar que a literatura de cordel está presente em todas as regiões do país,
mesmo reconhecendo que em algumas localidades ela de difundiu mais
profundamente. No Sudeste a literatura de cordel se consolidou sobretudo a
partir do final da década de 1940, quando as comunidades de migrantes
nordestinos se formaram no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas temos também
cordelistas atuando em Minas Gerais. Cabe destacar, também, a difusão do cordel
no Distrito Federal quando os trabalhadores da construção civil levaram a
cantoria e o cordel para os locais de trabalho e para a praça pública. É
importante recordar, também, a difusão do cordel na região Norte em razão das
comunidades de migrantes durante o chamado "ciclo da borracha" e que
se fortaleceu com a criação da Editora Guajarina na cidade de Belém que
funcionou entre 1914 e 1949.
A internet vem sendo realmente uma importante difusora e
universalização desta modalidade de expressão e comunicação....
Rosilene: Certamente. O
cordel por ser um gênero literário que possui relações com a oralidade, com o
texto escrito e com a imagem (através das capas dos folhetos) transitou com
bastante facilidade através do jornal impresso, do rádio, da televisão, do
teatro, do cinema e, mais recentemente, através da internet. Neste sentido vale
recordar as primeiras "pelejas virtuais" a partir da década de 1990
quando os poetas passaram a compor folhetos em parceria através de mensagens de
texto e de e-mails e o cordel ingressou no ciberespaço, a exemplo do folheto
intitulado "O marco cibernético construído em Timbaúba", de autoria
do poeta José Honório da Silva e publicado em 1995. Atualmente os cordelistas
produzem em parcerias através dos aplicativos de celular e mantém uma
importante rede de trocas e sociabilidades através das redes sociais. Vale
acrescentar que alguns poetas mantém sites e bloggs, a exemplo do blogg Acorda
Cordel, mantido pelo poeta Arievaldo Viana desde 2011. É preciso enfatizar,
também, que a internet vem possibilitando para a realização de pesquisas,
através da digitalização de acervos localizados no Brasil e no exterior que
disponibilizam informações e o acesso a originais raros impressos no início do
século XX bem como a produção contemporânea.
Qual a importância do registro da Literatura de Cordel
como Patrimônio Cultural do Brasil?
Rosilene: é possível
afirmar que registro da literatura de cordel tem pelo menos dois significados:
o primeiro é o reconhecimento simbólico, ainda que tardio, do Estado brasileiro
da importância de uma prática cultural que por muito tempo foi considerada uma
poesia menor, colocada à margem por setores das elites. O poeta Raimundo Santa
Helena, por exemplo, tentou por duas vezes ingressar na Academia Brasileira de
Letras e em que pese já ter escrito mais de 500 folhetos, foi duas vezes
rechaçado pelos acadêmicos da ABL na década de 1980. No Rio de Janeiro, na
Praça XV e no Campo de São Cristóvão, folhetos eram apreendidos e os poetas
presos. na Bahia em 1938 os folhetos eram queimados em praça pública. Os poetas
Rodolfo Coelho Cavalcante (1919-1986) e o poeta José Bernardo da Silva
(1902-1972) foram presos por venderem literatura em praça pública, o que
podemos afirmar que é uma vergonha, num país em que a população ainda tem pouco
acesso a literatura. O segundo aspecto é a dimensão política do registro: o
acesso a literatura de cordel passa a ser um direito de todos os cidadãos, já
que se tornou um bem cultural. Portanto, a partir do registro os poetas e toda
a cadeia produtiva do cordel poderá reivindicar maior acesso às políticas
públicas para a sua salvaguarda e difusão para as próximas gerações.
Dá para imaginar o número aproximado de cordeliastas,
repentistas, além de xilógrafos, pesquisadores e todas as pessoas envolvidas na
sua pesquisa?
Rosilene: o número de
pessoas envolvidas direta ou indiretamente na produção e difusão da literatura
de cordel no Brasil é muito grande e não temos uma estimativa em números
concretos. Somente através de um recenseamento teríamos condições de expressar
quantitativamente a presença do cordel no país. O dossiê do registro produzido
pelo IPHAN realizou 140 entrevistas. No entanto, não havia possibilidade de
entrevistar todas as pessoas envolvidas. O que posso dizer é que este número
não representa a totalidade desta comunidade, mas é importante informar que
além das entrevistas realizamos diversas reuniões com os poetas, pesquisadores,
proprietários de editoras especializadas, xilógrafos, declamadores e
representantes de instituições de pesquisa em diversas cidades do país, para
discussão acerca do significado deste registro e para a construção de
recomendações de salvaguarda.
Como define os cordelistas brasileiros?
Rosilene: creio que este
momento é muito importante para a literatura de cordel e para a nossa geração
que teve a oportunidade de concretizar este registro. Costumo dizer que estamos
prestando, também, uma homenagem e reconhecimento a todas as pessoas que no
passado se dedicaram à difusão da literatura brasileira nas praças, feiras,
mercados populares e não foram reconhecidas como escritores. A sociedade
brasileira reproduz, no plano cultural, a exclusão social e econômica de grande
parte da população que não tem acesso ao livro e a leitura como um direito de
todos. Os poetas de cordel são pessoas obstinadas em levar a poesia aos lugares
mais distantes e traduzem para a linguagem do verso rimado e metrificado a
opinião pública, os valores sociais e até mesmo os preconceitos que precisamos
combater. Sou muito grata pela oportunidade de ter feito parte de uma excelente
equipe de trabalho, sob a
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