Mauro Luis Iasi
“Por parte do conspirador, não há senão medo,
inveja e a suspeita da punição, que o atormenta”
Nicolau Maquiavel
Temos no governo um usurpador, mas devemos nos indagar sobre a
natureza dessa usurpação. Para um marxista o caráter de um governo se
mede pelos interesses de classe que representa, por vezes direta e
claramente, por vezes mediados e ofuscados por formas que dificultam a
percepção do caráter de classe envolvido.
No caso particular que analisamos, nossa tarefa fica facilitada pelo
fato que as medidas anunciadas não procuram disfarçar sua
intencionalidade. Seja nos termos expressos no projeto do PMDB, batizado
de Ponte para o Futuro, seja na forma apresentada pelo presidente do
Senado, Renan Calheiros, como Agenda Brasil, seja nos inúmeros projetos
que tramitam no Congresso, cerca de 56 proposituras, e que encontrão um
rito aligeirado para serem implementadas, tudo indica claramente uma
linha inequívoca que aponta para a brutalidade do ajuste necessário ao
capital, o ataque aos direitos dos trabalhadores e o retrocesso social e
cultural.
Em linhas gerais podemos indicar três eixos fundamentais: o ajuste
econômico manifesto nas medidas ditas de “austeridade”, medidas no campo
dos valores e relativas à ofensiva moralista/obscurantista e medidas
jurídico-políticas de garantia da ordem.
No campo da austeridade vemos os cortes orçamentários nas áreas
sociais, as críticas à dimensão de políticas públicas como o bolsa
família, propostas de diminuição e descaracterização do SUS,
privatização do ensino em todos os níveis – do ensino básico ao superior
– , mais uma reforma da previdência, diminuição de ministérios,
flexibilização ou extinção das licenças ambientais, o famigerado PL 257
que em nome de regularizar a relação e as dívidas dos Estados e
municípios coloca condicionantes para acertar as contas que vão desde o
congelamento de salários e estancamento das carreiras, corte brutais de
gastos até programas de demissão voluntária que tornarão letra morta a
estabilidade no emprego dos funcionários públicos em todos os níveis.
A ofensiva obscurantista se expressa, também, nestas medidas chamadas
de “austeridade”, como é o caso do fechamento do Ministério da Cultura e
outras pastas, no retrocesso na pauta dos Quilombolas e nações
indígenas, no desmonte do SUS. No entanto, é em algumas iniciativas que
se apresenta de forma mais clara, como no Estatuto da Família em
tramitação, nas diferentes iniciativas de restrição do debate de gênero,
da pauta LGBT e do livre direito de opinião no ato educativo, tal como
se expressa nas diferentes leis da mordaça no âmbito municipal, como as
chamadas iniciativas da Escola sem Partido ou o que denominam de
“ideologia de gênero” e que iniciativas similares no Congresso Nacional.
Ocorre que os segmentos dominantes que usurparam o poder executivo
através de manobras jurídicas, paramentares e midiáticas de caráter
casuístico, oportunista, contornando o próprio marco legal e
constitucional, sabem que a dramaticidade de tais medidas provocará
reações, sendo necessárias medidas legais de contenção e garantia da lei
e da ordem. Neste âmbito o Estado burguês parece estar bem aparelhado,
não apenas com instrumentos jurídicos e dispositivos judiciários, mas
com aparatos de repressão dispostos a serem utilizados.
O caráter de classe da usurpação parece evidente. Trata-se de
encontrar a forma adequada de impor, mais rápida e profundamente, os
“ajustes” necessários ao bom andamento da acumulação de capitais, ao
mesmo tempo em que se produz um acerto de contas político e ideológico
que legitime perante a sociedade tais medidas, não pelo seu evidente
caráter particular, mas por sua suposta universalidade: “salvar o
Brasil”. Mas do que o Brasil precisa ser salvo?
O discurso ideológico dos usurpadores procura se legitimar com o
discurso que o país precisa ser salvo de um governo “desastroso” e
“irresponsável” que, colocando em risco a economia, jogou a nação no
caos. Talvez o discurso mais significativo na bacia de impropérios que
marcou as falas no Senado da República por ocasião da aceitação do
processo de impedimento da Presidente, tenha sido de um Senador do PTB
de Pernambuco que a pretexto de defender o governo Dilma fez uma fala
muito bem articulada argumentando os motivos pelo qual não se poderia
acusar a presidente de “irresponsabilidade fiscal”. Diante de um certo
incômodo dos governistas, o senador deslindou um rosário de iniciativas
que vão desde os cortes no orçamento, medidas de saneamento financeiro,
reforma na previdência, contenção de gastos, tudo isso sem deixar de
incentivar o agronegócio, as indústrias, o comércio exportador e os
bancos, medidas, muitas vezes, nas palavras do parlamentar, que não se
preocuparam em ferir interesses de aposentados, de categorias
profissionais e do funcionalismo público.
Quando olhamos as medidas apontadas na pauta reacionária do usurpador
que o ocupa o Palácio do Planalto, vemos com preocupação que o governo
que foi afastado, em todos os níveis, aplainou o terreno para o
retrocesso. As negociações com Renan e sua Agenda Brasil, já haviam
avançado muito no ataque as licenças ambientais, aos quilombolas,
indígenas e atingidos por barragens, em nome de criar as condições para
retomar o “crescimento econômico”, o volume de cortes já implementado
sucateava a ponta de inviabilizar, por exemplo, as universidades, e
garroteavam fortemente as políticas na área da saúde, da educação, da
assistência. O risco evidente de privatização e mercantilização do
ensino já está indicado claramente no Plano Nacional de Educação, por
exemplo, quando indica que o fundo público pode ser direcionado para
financiar tanto a educação pública como a privada.
A ameaça de regularizar as terceirizações, inclusive em atividades
fins, não é uma novidade em várias esferas, mas destacamos a área da
saúde. Destacando que devemos ser contra a terceirização em todos os
níveis, lembramos que quando uma OS implementa um CAPS, no corpo da
eufemisticamente chamada parceria público-privada para operar ações no
SUS, contrata médicos, psicólogos, assistentes sociais e outros
profissionais pela CLT. Ora, estes profissionais desempenham atividades
“meios” ou “fim” no ato dos atendimentos realizados. Para não deixarmos o
campo da saúde, o que significa exatamente a EBSERH imposta goela
abaixo nas universidades?
No âmbito do chamado retrocesso de valores as coisas não são
melhores. O governo interrompido flertou perigosamente com o
obscurantismo, cedeu por várias vezes para não provocar a
suscetibilidade fundamentalista, seja no campo da pauta LGBT, seja no
campo mais geral dos valores, até mesmo na necessária defesa do caráter
laico do Estado. As imagens da presidente implorando voto no Templo de
Salomão, monumento do atraso moral e do precário senso estético,
aceitando a carta das “mulheres evangélicas” de olho nos votos do
segmento e do apoio da bancada evangélica, são a indicação de concessões
muito maiores que viriam a ocorrer.
Mesmo no campo dos meios repressivos e jurídicos o terreno foi
amplamente aplainado pelo governo interrompido, seja pela manutenção
injustificável de dispositivos legais, como a famigerada Lei de
Segurança Nacional, como a criação de novos como a Portaria Normativa de
dezembro de 2013 que dispõe sobre as Operações de garantia da Lei e da
Ordem, e, mais claramente, na atual Lei Antiterrorismo.
Neste ponto a usurpação adquire forma paradoxal. Por que interromper
um governo que em tudo cedia às exigências dos segmentos conservadores?
Na verdade as camadas dominantes dividiram-se quando a isso. Até o final
de 2015 havia claramente um alinhamento das frações de classe da
burguesia monopolista em nome da “estabilidade” e uma direção clara de
enfraquecer o governo para derrotá-lo em 2018. O que mudou de lá para cá
é o fato que a direita, parlamentar e social, pressentiu o momento
difícil do governo e decidiu partir para o ataque. O desencadear do
processo de impeachment no qual o destempero de Cunha é elemento
chave, precipitou a situação de instabilidade que culminou no
alinhamento da burguesia na direção da interrupção do mandato de Dilma e
o fim do ciclo petista no governo.
Este é o elemento que torna complexa a conjuntura. Para o bom
funcionamento da equação usurpadora era necessário legitimar o ato. No
entanto, como para sua execução seria necessário torcer a legalidade,
uma vez que parece evidente não ter ocorrido o chamado crime de
responsabilidade, a linha adotado foi da legitimidade de substituir um
governo que perdeu o apoio parlamentar e social, por um novo que
garantiria a estabilidade necessária.
Todo conspirador, já dizia Maquiavel, precisa fazer crer que o
afastamento do governante irá satisfazer desejos e anseios do povo, uma
vez que a própria ação conspirativa que culmina na usurpação do poder é
por sua natureza vista como odiosa pelo povo fazendo com que, nas
palavras do florentino, “as dificuldades com que os conspiradores teriam
que lutar seriam infinitas”. Era imprescindível criar um clima de
insatisfação e oposição em amplos segmentos da população contra o
governo e isso foi produzido pela combinação de ações judiciais e
midiáticas que foram eficientes em colar no governo a pecha da
corrupção, do desmando e da incompetência. Como é próprio da lógica do
preconceito, foi funcional atribuir estes estigmas à condição de
“esquerda” e tirar dos esgotos da luta política o anticomunismo e a
ameaça à família, a moral, à pátria como pretexto para a ação
usurpadora.
A condição do “conspirador” implica mais dificuldades do que a
posição de governo para empreender seus objetivos. O governo tem
recursos de poder consideráveis que haviam se demonstrado eficientes,
desde o poder de nomear cargos, negociar verbas, oferecer apoio
político-eleitoral, assim como um recurso que não devemos menosprezar
que é a “legitimidade” do voto. Colocamos entre aspas o termo
legitimidade porque não consideramos que nas condições em que se dão as
eleições no Brasil podemos pressupor, sem maiores considerações, que o
voto implica legitimação. Uma disputa onde um candidato dispõem com a
generosa doação de empreiteiras, bancos, planos de saúde, do
agronegócio, ente outros, de R$ 381 milhões para gastar, quase 12
minutos de tempo de televisão, contra outros que não chegaram à R$ 40
mil de contribuições militantes e tendo 45 segundos na TV (depois da
minireforma de 2015 este tempo cairá para 17 segundos), possa ser base
para qualquer coisa que possa ser chamada de legítima.
Seja como for, o cargo reúne recursos consideráveis que somados à um
respaldo popular, lembremos que o nível de valoração positiva do governo
em anos anteriores beirou a casa dos 80%, torna difícil a vida dos
conspiradores. Era preciso reverter um por um estes recursos. A ofensiva
midiática, as manifestações de rua, as ações judiciais, o corroer da
base de sustentação, fizeram este trabalho.
Este foi o papel da direita e ela o desempenhou com eficiência. No
entanto, o fato do governo, nos termos da governabilidade pelo alto
escolhida, insistentemente se empenhar em mostrar-se responsável perante
aqueles a quem devia sua governabilidade (as alianças políticas no
parlamento e o pacto com a burguesia em pró do “crescimento econômico”),
através das inúmeras medidas das quais aqui enumeramos apenas algumas,
solapou o principal recurso do governo interrompido: o apoio popular.
É verdade que segmentos da esquerda, generosamente, movem seus
recursos contra a direita usurpadora, mas há uma diferença entre mover
segmentos sociais pontuais, bases de partidos, sindicatos e movimentos
sociais e ter o apoio dos trabalhadores como classe e a possibilidade de
ampliar este apoio para bases de massa. O problema é que isso não é
passível de ser mobilizado agora como forma única de reação ao ataque
institucional que a direita operou com habilidade.
O próprio Maquiavel afirmava que não se deve cair só por crer que
poderá encontrar quem te levante, pois isso não acontece. E explica:
“Aqueles que possuíram, por muitos anos, seus principados, para
depois perdê-los, não acusem a sorte, mas sim a própria ignávia
(negligência): porque não tendo nunca nas boas épocas pensado e que os
tempos poderiam mudar (e é comum nos homens não se preocupar, na
bonança, com as tempestades), quando vieram tempos adversos, pensaram em
fugir e não defender-se e esperam que as populações fatigadas da
insolência dos vencedores os chamassem novamente”.
Isso só pode ter algum sentido quando tudo mais falha. Será este o
nosso caso? A frase de Lula, empenhando suas esperanças em um racha no
PMDB que permitiria recompor a base da governabilidade revertendo o
impedimento ou criando as condições para uma volta ao governo em 2018
parece indicar este caminho. Nos parece um caminho muito ruim.
A usurpação foi facilitada pela negligência. As massas, em especial
os trabalhadores não se movem na defesa de abstrações. Esperam que saiam
às ruas na defesa da “democracia” ou do “Estado de Direito” é uma
ilusão. Como já afirmei, a democracia não morre apenas por manobras
palacianas e parlamentares, por meio de contorcionismos e oportunismos
legais. A democracia agoniza quando um pedreiro é seqüestrado,
torturado, assassinado e seu corpo escondido, como o corpo de Amarildo. A
democracia agoniza com seu corpo arrastado por uma viatura, como o
corpo de Claudia. A democracia morre em cada jovem negro que engrossa a
lista dos famigerados autos de resistência. A justiça definha quando
Rafael Braga continua preso por portar um desinfetante e militantes são
processados por se manifestar contra as fraudulentas obras da Copa do
Mundo da FIFA. A democracia morre com cada casa que cai na Vila
Autódromo, em cada comunidade indígena atacada por pistoleiros, em cada
cidade arrasada pela lama das mineradoras ou a sanha de empreiteiras.
Depois de transformar a democracia numa abstração que não faz sentido
para boa parte de nossa classe, não se pode esperar que as pessoas se
mobilizem para defendê-la.
As medidas empreendidas pelos usurpadores e que já haviam começado
pelo governo interrompido atacam alguns dos elementos mais essenciais à
vida, não na abstração de “direitos”, mas nas condições de nossa
existência. Na casa para morar, na terra em que precisamos plantar, no
alimento que sacia a fome, no tratamento que salva a vida, na escola que
alimenta o espírito e a consciência, no trabalho, no transporte. Os
jovens que ocupam as escolas, os companheiros nas ocupações urbanas e
rurais, as fábricas ocupadas, artistas que ocupam o falecido Ministério
da Cultura, nos mostram um caminho para substanciar a democracia,
rechea-la de carne real, cor e cheiro.
Quando deixar de ser um fantasma de terno e gravata, quando beijar a
boca dos oprimidos, quando marchar ao nosso lado, andar de ônibus, morar
na periferia, quando sofrer da violência da cidade e do trabalho,
quando suar nosso suor, sangrar nosso sangue e chorar as nossas
lágrimas, quando arrancar a venda dos olhos e empunhar a espada na
direção dos opressores… quem sabe, haverão muitos na defesa da
democracia e os usurpadores não poderão mais se esconder sob seu manto
de noite e de arbítrio.
“Somente são bons, certos e duradouros
os meios de defesa que dependem de ti mesmo
e do teu valor”
Maquiavel
https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/20/o-usurpador-e-o-caminho-da-usurpacao/